Numa era em que estamos permanentemente a ser estimulados e em que muitos partilham as suas vidas nas redes sociais, vale a pena pensar na importância de nos recolhermos.
Recolher implica aceitar que podemos ser e sentir várias coisas. Que a nossa vontade de sair e conviver é tão válida quanto a de ficar em casa, em silêncio. O recolhimento é um convite a olharmos para nós. Mas é, ao mesmo tempo, um buraco fundo para algumas pessoas que, não sendo capazes de o olhar de frente, arranjam distrações. Numa caixa de gelado, num pacote de batatas fritas ou em tabletes de chocolate, por exemplo. Está comprovado que esses alimentos nos trazem uma sensação de bem-estar imediata, exatamente aquilo que precisamos em momentos de ansiedade, medo, angústia ou simplesmente tédio. É por isso que, para tantas pessoas, estar parado é sinónimo de impaciência. É suposto aproveitar a vida, sair, conviver. Principalmente depois de tanto tempo fechados em casa. Mas por que é que aproveitar a vida tem de ser incompatível com saber estar só? Saber estar, simplesmente, no momento presente, sem ir à despensa nem ao frigorífico. Sem fazer uma chamada. Sem pegar no telemóvel para ver o que os outros estão a fazer.
Estarmos sós, sem nos sentirmos sozinhos, é fundamental para olharmos a comida como algo que nos acrescenta, que nos nutre, que nos mantém vivos. E não como algo que nos tapa buracos, que nos preenche, como se nos faltasse sempre alguma coisa. É exatamente por não darmos oportunidade de estar connosco mesmos que nunca iremos perceber o que nos faz falta. No preciso momento em que sentimos dor, arranjamos uma distração. E a comida vai fazendo companhia. Mas não resolve.
E como tendemos a ver a vida em dicotomia, há um dia em que dizemos basta e não queremos continuar a usar os alimentos como distração. Prometemos novas regras. E os convívios passam a ser vistos com medo porque achamos que serão os principais sabotadores deste novo estilo de vida que queremos começar à força toda. Quase desejamos não ser convidados para aquele jantar, tememos o restaurante escolhido e ansiamos por poder ver a ementa em casa e conseguir encontrar estratégias para encaixar num padrão saudável. A desconexão de nós mesmos é tanta que precisamos de ajuda para saber o que comer em situações sociais. E como isso exige pensar demasiado e causa angústia, a solução é fugir: neste caso, ficando isolados. Na segurança dos pratos que já se conhece, mesmo que sejam monótonos, mesmo que não nos façam felizes.
Que caminho é este? Que relação com a comida é que estamos a construir? Quando é que estar à mesa passou a ser sinónimo de descontrolo ou de medo? Onde estão as boas memórias em partilhar refeições? Como é que nos desconectamos tanto de algo que devia ser inato – saber o que o nosso corpo pede? Exatamente porque nunca nos permitimos a ouvi-lo. Calamo-lo cada vez que surge uma emoção menos agradável. Com comida.
Recolher é fundamental, com equilíbrio. Saber estar na nossa companhia para que possamos dar a nossa energia aos outros. Saber que há tempo e espaço para tudo. E que condicionar a nossa vida em torno da comida não é saudável.
Precisamos, urgentemente, de abraçar todas as partes que somos. Mesmo as que nos trazem inseguranças, as que doem e as que queremos calar com distrações. Precisamos de acreditar que tudo o que procuramos no exterior já está, efetivamente, connosco. E precisamos, principalmente, de pedir ajuda se não conseguirmos fazê-lo sozinhos. Pode ser um processo mais demorado para uns do que para outros. Mas é urgente que cada um saiba palmilha-lo. Para o bem comum. A mudança do todo começa com a mudança de cada um.
Este artigo faz parte da edição de março de 2023 da Revista Progredir.